Distúrbios alimentares: Uma questão cultural?

Os estudos sobre distúrbios alimentares apontam normalmente para uma maior incidência, senão uma exclusividade, desses transtornos nas classes sociais privilegiadas. O nível sócio econômico  seria assim um critério importante na determinação dessas patologias, associado aos ideais de um corpo magro como padrão de beleza ditado pela moda e portanto perseguido por jovens adolescentes suscetíveis à mídia cultural.
É significativo o número de trabalhos que apontam para a relação entre riqueza e distúrbios alimentares. No entanto,  estudos realizados em clínicas do estado de São Paulo  nas quais são atendidos pacientes  portadores de anorexia nervosa e bulimia  o que se observa difere um tanto dessas afirmações.            
“Nosso trabalho vem acontecendo no ambulatório infanto-juvenil de transtornos alimentares do Hospital das Clínicas de São Paulo (PROTAD), no qual participamos como psicanalistas em uma equipe multidisciplinar e na Clínica de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia do Instituto Sedes Sapientiae – SP (CEPPAN), onde desenvolvemos exclusivamente a psicanálise de pacientes com anorexia e bulimia.  Vimos nos deparando com casos clínicos que nos levam a refletir sobre essa questão tão pontual. Até julho de 2002  acompanhamos 30 pacientes - 15 anoréxicas e 15 bulímicas - com idades entre 13 e 36 anos. As tabelas abaixo mostram essa distribuição por serviço e por classe sócio econômica”



* Para os padrões do DSM IV apenas 2 (duas) pacientes atendem todos os critérios diagnósticos; as demais têm como diagnóstico Distúrbio Alimentar Não Especificado.


Os dados mostram uma distribuição que expressa a realidade brasileira. Embora esses serviços sejam públicos, a falta de centros especializados em transtornos alimentares faz com que recebamos pacientes provindos de todas as classes socioculturais. Temos observado, de fato, uma não prevalência de classe social na incidência dessas patologias.
Também é expressiva a demanda que se reproduz nas diferentes instituições: o PROTAD atende em regime ambulatorial e conta com uma equipe multidisciplinar (psiquiatras, endocrinologista, nutricionistas, terapeuta familiar, terapeutas comportamentais e psicanalistas) e recebe um número significativo de pacientes anoréxicas. Já o CEPPAN trabalha exclusivamente com psicanálise e recebe, predominantemente, pacientes bulímicas; o que nos leva às seguintes considerações:

1. As anoréxicas são levadas compulsoriamente pela família para as consultas;
2. O trabalho em equipe, com a inclusão da família, favorece o engajamento da paciente anoréxica, sempre resistente ao tratamento;
3. As pacientes bulímicas têm alguma demanda para a análise e se vinculam melhor ao analista;
4. O PROTAD é um ambulatório infanto-juvenil, atendendo pacientes com até 18 anos, compreendendo assim a faixa etária de maior incidência da eclosão da anorexia; já o CEPPAN não tem restrição de idade, e nossa amostra engloba pacientes mais velhas (16 a 36 anos), em que predomina a Bulimia Nervosa.
5. A anorexia é mais facilmente identificada pela família, o que facilita uma intervenção mais precoce; diferentemente da bulimia, que ganha status de segredo, dependendo da própria paciente, muitas vezes, a busca por tratamento;
6. A dinâmica psíquica que envolve anorexia e bulimia são diferentes, o que nos leva a pensar que a crítica em relação à doença esteja um pouco mais preservada na bulimia.

O que tem chamado a atenção é o fato de essas pacientes se diferenciam de maneira significativa de seu próprio núcleo familiar e até mesmo de sua comunidade. São normalmente meninas que se destacam em seus estudos, têm um vocabulário bastante rico para sua idade e cultura de origem, envolvem-se com questões sociais, sobressaindo-se e tendo acesso a  uma ordem cultural que sua família não tem. Quando vistas com seus familiares, faz-se perceptível essa diferença.

Essas diferenças parecem remetê-las a questões mais profundas, encenadas num quadro de anorexia ou bulimia.

A própria adolescência, período em que se iniciam os transtornos, traz em si a problemática da diferenciação e esse degrau existente entre essas meninas e seu meio sociocultural parece incrementar as dificuldades próprias da idade.

Sendo assim, o apelo da mídia e a imposição de um ideal estético funcionariam apenas como um recurso ou um deflagrador de uma conflitiva já presente nessas meninas.